26/03/2007
Mercosul: Uma nova questão  
Rubens Antonio Barbosa

Temas técnicos, pela sua complexidade, muitas vezes, passam despercebidos da opinião pública mais informada. Nem por isso deixam de ser problemas menos importantes.

A questão da supranacionalidade nos processos de integração mais adiantados, como o Mercosul, é um deles. Trata-se de transferir parcela da soberania dos Estados Membros para um órgão que, em nome dos países, toma decisões que todos devem acatar. Em estágios menos avançados de integração, prevalecendo as instituições intergovernamentais, cada país exerce sua soberania, sem transferi-la a um órgão central que os represente.

Extremamente sensível, a questão da supranacionalidade nunca foi seriamente colocada para discussão por qualquer dos países membros do Mercosul, desde o início desse processo de integração.

A criação de instâncias supranacionais no Mercosul encontrou sistemática resistência por parte de todos os Governos brasileiros até aqui. Por outro lado, dificilmente haverá consenso entre os Estados Membros do Mercosul sobre a conveniência de promover modificações profundas no arcabouço jurídico-institucional criado em 94 com o Protocolo de Ouro Preto. 

Nas duas reuniões presidenciais mais recentes do Mercosul, em Córdoba (julho de 2006) e no Rio (janeiro de 2007), contudo, foi anunciada uma significativa mudança de posição do Governo brasileiro em relação ao tema da supranacionalidade.

Observando que “nunca existiu um clima político tão favorável para a integração regionial”, o Presidente Lula defendeu “o avanço do Mercosul na direção a supranacionalidade, a exemplo de que ocorreu em outras experiências de integração”.

Coerente com essa nova definição política, o Governo brasileiro tem apoiado o reforço institucional do Mercosul. Foram definidas diretrizes para a reforma dos órgãos decisórios e para o aperfeiçoamento do Sistema de Incorporação das Normas e está sendo discutida a criação de órgãos comunitários para a aplicação de políticas comuns, além da modernização da Secretaria Técnica do Mercosul e de uma  institucionalização mais profunda do Sistema de Soluções de Controvérsias.

Sugestões concretas para uma ampla revisão do modelo institucional adotado pelo Tratado de Assunção, que criou o Mercosul em 1991, estão sendo elaboradas pelo Itamaraty para serem apresentadas até junho, ainda enquanto o Paraguai exerce a presidência do grupo.

Caso efetivamente o Brasil apresente propostas na linha da supranacionalidade, será uma guinada de 180% na posição tradicional seguida pelo Ministério das Relações Exteriores.

O Itamaraty sempre defendeu que as instituições deveriam ser intergovernamentais, cada país mantendo sua soberania e as decisões tomadas por consenso, isto é, por voto unânime. Foram construídos argumentos para justificar a posição adotada até o momento: “oMercosul é um processo evolutivo e na fase inicial impõem-se o gradualismo e a flexibilidade para que o processo de integração avançe com realismo”; “o consenso, dando mais legitimidade às normas aprovadas,  foi essencial para a efetiva construção do processo de integração”.

É esse o panorama em que se insere a proposta presidencial de que o Mercosul abandone o modelo intergovernamental e aprove a criação de instituições supranacionais. 

Trata-se de uma decisão política que pode trazer profundas conseqüências para o Brasil, para a legislação interna e para o setor privado. Por isso, essa questão deveria ser mais debatida pela sociedade brasileira.

A criação de órgãos supranacionais, no momento de dificuldades e de ampliação por que  atravessa o Mercosul, poderá levar o Brasil, a maior, mais diversificada e industrializada economia de grupo, a ficar refém dos países menores ou mesmo de uma agenda promovida por novos membros. Em qualquer dos casos, o curso que esse tema vem tomando não parece ser de nosso interesse.

Na fase de união aduaneira, imperfeita pelas restrições ao livre comércio, pelas perfurações da TEC e sem coordenação de políticas macro-econômicas, é difícil defender a criação de órgãos que se sobreponham aos governos dos países membros. A discusão sobre o caráter supranacional das instituições fará sentido apenas no momento em que o processo efetivamente se aprofundar e o Mercosul caminhar de fato para um mercado comum, o que está longe de acontecer.

A supranacionalidade só poderia ser proposta ou aceita pelo Brasil, caso os demais paises concordem com a mudança da regra de consenso em vigor para a tomada de decisões e não como mais um gesto de generosidade ou de boa vontade de nossa parte.

O consenso deveria ser substituído pelo voto ponderado que reflita a diferença do peso específico de cada economia e que impeça a formação de coalizões permanentes contra o Brasil. 
A poderação do voto é um tema de difícil aceitação pelos demais parceiros que conseguiram incluir no Tratado de Asssunção a forma consensual de tomada de decisões. Apesar disso, a matéria deve ser enfrentada, como ocorreu agora no Parlamento do Mercosul.

O voto ponderado, assim, teria de ser a moeda de troca para o aprofundamento institucional do Mercosul com a criação de orgãos supranacionais.
   
Parece-me que sem essa contra-partida ao avanço na direção da supranacionalidade, dificilmente uma modificação do Tratado de Assunção, para promover sua incorporação, terá condições de ser aprovada pelo Congresso Nacional, pois o Brasil, ao contrário do que acontece na União Europeia, seria colocado na mesmo nivel dos demais países do Mercosul, ignorando-se as diferenças de peso econômico e político.

Parafraseando G. Clemenceau, a supranacionalidade é uma questão muito importante para ser deixada apenas para burocratas.

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