11/04/2006
Diplomacia em tempos de mudança
Rubens Antonio Barbosa
Desde a queda do muro de Berlin, com o fim da guerra fria, uma nova ordem política e econômica mundial vem tomando forma sob nossos olhos e os governos procuram adaptar-se às novas circunstâncias.
São tempos de grandes desafios e oportunidades. Novos fatos estão sendo criados a todo instante. A tecnologia encurta as distâncias. Novos países surgem. A ameaça de conflitos está mais dentro dos estados do que entre eles. Os países dito emergentes ocupam espaços crescentes e já são responsáveis por mais da metade do PNB mundial.
Reconhecendo os novos desafios globais, algumas chancelarias ao redor do mundo começam a se ajustar a essas realidades, procurando defender da melhor forma possível seus interesses.
O exemplo e a experiência de outros países para melhorar a eficiência de sua diplomacia são relevantes. Surgem soluções inovadoras, como postos virtuais, aprimora-se a política de pessoal, modernizam-se os métodos de trabalho, ultrapassados pela rapidez das comunicações, sofisticam-se a aplicação das tecnologias de informação e o treinamento adequado às novas demandas e redefinem-se os meios oferecidos no exterior aos diplomatas.
Enquanto isso, no Brasil, o Itamaraty também parece empenhado em reformas administrativas, de pessoal, de carreira e de objetivos, o que seria auspicioso não fôsse a peculiar visão do mundo e as prioridades que fundamentam essas transformações.
Os diplomatas no Itamaraty do Governo Lula, segundo a política vigente, estão sendo formados e doutrinados para ajudar a transformar o mundo e contribuir para uma nova geografia política, econômica e comercial mundial, para rejeitar a situação atual de um mundo globalizado, o enfraquecimento das organizações multilaterais em decorrência do unilateralismo dos EUA, além do realce às relações com os países em desenvolvimento.
A ideologização das decisões e a politização das negociações comerciais são algumas das características que moldam as prioridades da política externa definidas pela atual administração do Itamaraty.
Outra diferença é que, enquanto as chancelarias visam mudanças de qualidade, as transformações que estão sendo implementadas no Itamaraty se resumem a incrementos quantitativos, inclusive com perdas qualitativas potenciais: mais embaixadas (16, das quais 9 na Africa) e mais diplomatas para resolver todos os problemas. Nada ou quase nada é pensado para aperfeiçoar os métodos de trabalho, melhorar a política de pessoal ou modernizar as estruturas.
A retirada do inglês como língua eliminatória (re-introduzida diante do clamor de protesto então observado), e a obrigatoriedade de leituras politicamente dirigidas para os diplomatas que voltam para Brasília são exemplos recentes de trapalhadas que arranham a imagem da instituição, mas que podem ser consideradas relativamente inofensivas se revertidas a tempo.
Agora, porém, segundo as informações disponíveis, estão sendo tomadas medidas que justificam reais preocupações.
Antes de abordá-las, lembro que alguns anos atrás, com o propósito de estudar meios e modos de modernizar o Itamaraty, foi ali constituída uma comissão que, integrada por todas as chefias da instituição e presidida pelo então titular da pasta, Fernando Henrique Cardoso, reuniu-se por vários meses. Após debates que envolveram consultas aos chefes dos postos no exterior, essa comissão produziu um relatório circunstanciado das disfuncionalidades do Itamaraty, com sugestões de medidas corretivas. Várias dessas medidas foram implementadas, com resultados positivos.
Contrariamente àquele democrático precedente, a reforma que agora se anuncia em Brasília foi arquitetada de maneira centralizada e pouco transparente, e a seguir fatiada em medidas provisórias que foram ou vão ser submetidas ao Congresso Nacional.
Seguindo a idéia superada de que problemas organizacionais são resolvidos pela expansão continuada dos meios, foi proposta a criação de 400 novos cargos de diplomatas para serem preenchidos em 4 anos. O bom senso do Senado reduziu esse número para 105, mas por pressão do executivo, a Câmara dos Deputados, com pouca divulgação, anulou essa decisão e restabeleceu o número inicial. As etapas seguintes em termos de carreira, isto é, a criação de novas gratificações e a alteração de regras para acelerar as promoções dos funcionários simpáticos à chefia, estão prontas, mas parecem também encontrar resistência no Legislativo, avesso a aumentar despesas pouco justificadas em ano eleitoral.
O problema é que, no açodamento de antecipar o uso dos poderes a serem conferidos pela legislação proposta, promoções já foram feitas em dezembro com fundamento legal no mínimo discutível, e o Instituto Rio Branco realizou concurso para preencher vagas que poderiam não se ter materializado.
Tendo atravessado até mesmo os vinte anos de regime militar como uma instituição do Estado, com formação e organização de quadros independente do pensamento situacionista, é paradoxal que o Itamaraty seja hoje objeto de uma ameaça tão séria a aspectos fundamentais da sua independência institucional.
Os equívocos hoje cometidos na área administrativa da chancelaria brasileira têm parentesco com os erros e distorções de prioridades perpetrados também na área da política externa. A gestão que está desestruturando uma instituição até então considerada modelo de boa organização é a mesma que não consegue acertar o passo nas relações com os vizinhos e com seus parceiros tradicionais de peso, e que, deixando de lado a defesa dos interesses nacionais permanentes, sai mundo a fora a fazer política ideológica na esperança de ressuscitar realidades do passado.
Com ou sem a vitória da oposição em outubro, haverá muitos nós a desatar no Itamaraty. Os aqui mencionados, na esfera administrativa, estarão entre os primeiros, pois não existe boa política sem bons instrumentos para executá-la. |