22/06/2004
CoexistÊncia Pacífica
Rubens Antonio Barbosa

A convite do Instituto de Relações Internacionais, voltei na semana passada à China para participar, em Pequim, como debatedor, de conferencia para celebrar o 50º aniversário dos cinco princípios de coexistência pacifica, enunciados pela primeira vez em 1954, pelos primeiros-ministros Jawaharlal Nehru, da India, e Chu Enlai, da China.

Os cinco princípios –soberania, não agressão, não-intervenção, igualdade e benefício mútuo e coexistência pacifica-, na realidade, são normas básicas que deveriam orientar a formulação e a implementação da política externa de qualquer nação. A essência desses princípios e o respeito mútuo pela soberania.

Esses princípios foram exaustivamente examinados pelos participantes no contexto das relações internacionais contemporâneas, da globalização, da diplomacia preventiva, do multilateralismo, da diversidade cultural e da nova ordem internacional.

Talvez mais importante do que o tema proposto tenha sido a presença, nessa conferência, de personalidades que tiveram grande influência no cenário internacional nas últimas décadas.

Lá estavam dois ex-secretários de Estados dos EUA, Henry Kissinger e George Schultz, os ex-primeiros ministros HELMUT Kohl, da Alemanha, e R.Hawkc, da Austrália, o ex-presidente da India Narayanam, o ex-secretário geral das Nações Unidas Boutrosghali e ministros do Exterior de diversos outros países.

Não deixou de ser curioso o convite a dois ex-secretários de Estados dos EUA para discutir em Pequim temas como não-agressão e não intervenção na celebração de aniversário de princípios que, como originalmente enunciados, nunca reconheceram e muito menos respeitaram.

Mais interessante, quase irônica, foi a presença de Kissinger, no momento em que vazou para os jornais em Nova York controvérsia pública a respeito de análise pela Foreign Affairs de recente livro sobre a participação dos EUA e, em especial, do então secretário de Estado na intervenção norte-americano no golpe de Estado que provocou a queda do governo Allende no Chile.

Tendo vivido nos últimos cinco anos em Washington, não me surpreendi com o chocante contraste entre as apresentações dos “representantes ocidentais” e as dos ex-dirigentes dos países do Terceiro Mundo.

Enquanto, de um lado, nenhum dos expositores dos países em desenvolvimeto fez referência alguma à questões de segurança e de terrorismo, os dois ex-secretários de Estado ocuparam todo o tempo de suas exposições rebatendo as observações negativas feitas em relação aos EUA e reiterando a visão de Washington quanto à prioridade absoluta à guerra contra o terrorismo e à crosão da soberania.

Desde o 11 de Setembro, quando os EUA sofreram múltiplos ataques terroristas, o governo e o povo norte-americanos tiveram sua visão do mundo profundamente impactada. O mundo hoje visto a partir dos EUA é muito diferente da percepção da grande maioria dos países. E vice-versa: a percepção que o mundo tem das políticas dos EUA nada tem que ver com a imagem que a opinião publica norte-americana faz das prioridades de Washington em política externa.

Essa profunda divisão não será alterada no curto prazo, mesmo no caso da vitória democrata nas eleições para Presidência de novembro próximo, dada a prioridade atribuída ao combate ao terrorismo e à aplicação da nova Estratégia de Segurança Nacional, em vigor desde 2002.

Essa estratégia introduziu conceitos aplicados unilateralmente, como ataque preventivo em decorrência da percepção de uma ameaça iminente e mudança de regime em países vistos como de risco para a segurança dos EUA.

A nova ordem internacional, depois do fim da guerra fria, com o esfacelamento do Império Soviético e a queda do Muro de Berlim, nos últimos 15 anos, vem sendo moldada, do ponto de vista econômico, pela globalização e, do ponto de vista político, pela unipolaridade, em que uma única superpotência exerce um poder militar e político incontrastável, com sérias conseqüências para o ordenamento jurídico internacional.

Diante disso, a conferência concluiu que, neste começo de século, as normas básicas de convivência internacional, incorporadas nos chamados cinco princípios de coexistência pacifica, terão de ser atualizadas para continuar válidas e orientadoras do comportamento das nações.

As novas ameaças à paz e à segurança, criadas pelo terrorismo, pelo tráfico de drogas e pelo crime organizado, por não respeitarem nem fronteiras nem a soberania dos países membros da comunidade internacional, terão de ser levadas em conta.

Resta saber se essa atualização será feita com a participação da comunidade internacional no fórum apropriado das Nações Unidas ou por regras ditadas unilateralmente pela única super –potência.

A pergunta não parecerá retórica se observarmos o que ocorreu com os princípios de não-intervenção e não-agressão, regulados pelos capítulos VI e VII da Carta das Nações Unidas e agora postos em questão pela Estratégia de Segurança Nacional. Os novos conceitos de “ataque preventivo” e de “mudança de regime” desafiam a supremacia das Nações Unidas para a solução de controvérsias internas e para o uso da força.

A atualização dos princípios só pode ser feita pela própria comunidade internacional, por intermédio das Nações Unidas. O fortalecimento do multilateralismo e das organizações que regulam a paz e a segurança mundiais, como a ONU, e definem as relações comerciais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), cada vez mais importante para uma ordem econômica mais justa e equitativa, é imperativo e a única forma de restabelecer a tranqüilidade entre as nações e restaurar a segurança internacional, tão ameaçadas nos dias que correm.

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