Comércio exterior e negociações externas são hoje assuntos que integram a agenda da política interna.
A importância das exportações para o crescimento da economia e da geração de empregos, assim como a crescente percepção das implicações das negociações multilaterais, regionais e bilaterais, sobre as políticas econômicas e comerciais, estão fazendo com que a sociedade como um todo participe do debate desses temas.
O Congressso Nacional, as associações patronais e sindicais, organizações não governamentais e outros segmentos da sociedade começam a envolver-se nas discussões de forma nova e saudável.
É de todo interesse para a Nação que os passos do Executivo nos processos negociadores sejam devidamente acompanhados e avaliados. Comissões da Câmara e do Senado têm promovido reuniões para informar-se e debater a evolução das negociações comerciais por meio de seguidos encontros com autoridades diretamente envolvidas nas tratativas internacionais.
Tramitam no momento, no Congresso Nacional, oito propostas de Emenda Constitucional, de Projetos de Lei e de Decreto Legislativo, visando a dar ao Poder Legislativo competência para a definição de parâmetros na negociação de acordos internacionais.
Dentre essas iniciativas, merece especial reflexão e um debate mais amplo o projeto de lei do Senador Eduardo Suplicy, que "define os objetivos, métodos e modalidades de participação do governo brasileiro em negociações comerciais multilaterais, regionais ou bilaterais".
Tal proposição bate de frente com a Constituição (artigos 22, inciso VIII, e 84, inciso VIII) que dá competência privativa ao Executivo e não estabelece nenhuma condicionalidade, preliminar ou concomitante, para o exercício de sua capacidade negociadora.
O projeto de lei Suplicy, que conta com o beneplácito e o apoio ostensivo do comando do Itamaraty, como ficou evidenciado, mais uma vez, em recente audiência pública, tenta transplantar para o Brasil os mandatos negociadores concedidos pelo Congresso dos EUA ao Executivo, por meio do instrumento legal chamado de “Trade Promotion Authority”, o antigo “fast track”.
Ocorre que as tradições constitucionais no Brasil e nos EUA nessa matéria são totalmente distintas. Lá, o Congresso tem competência primária no tocante ao comércio exterior. No Brasil, não faz parte da tradição constitucional, a autorização do Poder Legislativo ao
Executivo para o exercício de atividades, como comércio exterior, cuja competência original pertence exclusivamente a este último, não cabendo, portanto, a figura de delegação de poderes ou de atribuição de qualquer tipo de mandato negocial.
O projeto define uma série de objetivos e condicionalidades a serem alcançados, os quais, em virtude de sua abrangência e ambição, podem dificultar, ou mesmo impedir qualquer negociação.
Dentre eles figuram, por exemplo, a redução acelerada dos subsídios à produção e à exportação de produtos agrícolas, até sua completa eliminação; a eliminação de barreiras abusivas como anti-dumping, direitos compensatórios e salvaguardas; a preservação da soberania para aprovar legislação em matéria de desenvolvimento agrícola, industrial e de serviços; o fortalecimento dos esquemas de integração, em especial do Mercosul e da América do Sul, através da definição e gradual introdução de políticas comuns, não só em matéria econômica, comercial e financeira, mas também em direitos sociais, como a garantia de renda mínima; a garantia de adequada proteção à indústria nacional em determinados setores; a adoção de uma política de importação de insumos, bens de capital e tecnologia.
Parece claro que os objetivos do projeto foram concebidos, em 2003, para dificultar as negociações da ALCA. Caso aplicados à outras negociações em curso, os entendimentos da Rodada Multilateral de Doha, por exemplo, poderiam não ser aprovados pelo Congresso ou poderiam inviabilizar o estabelecimento de acordos dentro do Mercosul e deste com outros parceiros, desenvolvidos ou em desenvolvimento.
Será que alguém acredita que a Rodada Multilateral vai promover uma “acelerada redução dos subsídios” ou que o Paraguai, a Bolívia ou a Venezuela sejam capazes de fornecer ao Brasil os capitais, os equimentos e o know-how de que necessita a economia brasileira em seu processo de desenvolvimento?
Caso aprovado, haveria uma significativa alteração da sistemática negociadora brasileira e a transferência de competência entre os poderes com possível redefinição dos objetivos e prioridades de negociação. Além disso, poderia significar um engessamento indevido e negativo da capacidade de ação do Poder Executivo (e da diplomacia comercial brasileira) por determinações genéricas e principistas do Poder Legislativo, tolhendo a possibilidade de barganhas parciais e ganhos incrementais que podem apresentar real interesse para o Brasil.
A intenção do Senador Suplicy de, através desse projeto, defender o interesse nacional, pode, paradoxalmente, levar a uma situação inversa, pois, nenhum resultado negociador conseguiria, realisticamente, atender a todos os objetivos defensivos e ofensivos ali estabelecidos, alguns redundantes e outros dependentes puramente de ação interna.
Por outro lado – há males que podem vir para o bem – a aprovação abriria um importante precedente para o Congresso criar, quem sabe, o Ministério do Comércio Exterior, antiga reivindicação do setor privado. A criação deste Ministério reduziria a crescente politização das negociações comerciais, possibilitaria um comando mais forte e o fim da descoordenação que prevalece na área do comércio exterior, com a interveniência no processo decisório interno de 23 orgãos públicos e com um cipoal de mais de 3.600 atos legais, dificultando a vida do exportador.