Não é nenhum segredo que as relações entre os militares e os civis no Governo Lula vem se deteriorando gradualmente.
Em um dos livros clássicos sobre as relações entre civis e militares,”O soldado e o Estado” (The Soldier and the State), Samuel Huntington propos o que chamou de “controle objetivo” para equilibrar a atuação profissional dos militares com a supremacia politica civil.
É histórica a tensão entre civis e militares no Brasil. Basta recordar os movimentos de força ao longo dos últimos cem anos, em especial no periodo mais recente de 1964 a 1985.
A criação do Ministério da Defesa, em junho de 1999, foi um grande avanço democrático e de gestão. A exemplo do que ocorreu em outros países quando da unificação dos tres serviços, a decisão foi recebida com reservas por parte das Forças Armadas.
Desde então, surgiram tensões esporádicas, que se acentuaram mais recentemente a partir da crise com os controladores de voo. Enfrentamentos ideológicos, reabrindo feridas difíceis de cicatrizar e que a lei de anistia buscou superar, como o caso da promoção postmortem de Lamarca, e a quebra da hierarquia, como no caso dos sub-oficiais controladores de voo, recebidos pelo Ministro da Defesa, sem a presença do Comandante da Aeronáutica, contribuem para o aumento das tensões e para a volta de manifestações políticas indesejáveis da alta hierarquia do exército.
Desafios recentes, representados pela redefinição do papel das FFAA e o emprego dos militares na segurança interna em operações contra o trafego de drogras ou a violência nas favelas do Rio de Janeiro encontram as FFAA prontas a cumprir as decisões do poder civil com relutância, em virtude da falta de preparo e de equipamentos para fazer face a essas situações.
As Forças Armadas estão mal equipadas, com soldos defasados e com baixa estima pelos arranhões na disciplina interna e por medidas que contribuem para seu esvaziamento, como a anunciada decisão de desmilitarizar o controle aéreo.
O orçamento federal para as três Armas (cerca de 70% comprometido com o pagamento de pessoal e encargos) representa cerca de 1,7% do PIB, um dos mais baixos da América do Sul (a média mundial é 3,5%). As dificuldades financeiras para equipá-las adequadamente aumentaram nos últimos anos, dificultando a missão constitucional de defesa interna (manutenção da lei e da ordem) e externa (artigo 142). Alocação de recursos necessários para uma gradual modernização das tres forças e para o reajuste dos soldos são providências inadiáveis.
As promessas de recursos para corrigir essa situação e permitir que as FFAA possam defender adequadamente nossas fronteiras, a Amazonia, nossas plataformas marítimas de exploração de petróleo e mesmo a Usina de Itaipu para casos de emergência não são cumpridas. Não se ouve mais falar do plano de ação das FFAA, anunciado em maio passado.
Não é possível que um país como o Brasil, que pretende ser alçado a uma condição de potência nas próximas décadas, com um território da extensão do nosso, com fronteiras com dez países, com um litoral onde são explorados recursos vitais para nossa segurança nacional, como petróleo e gás, deixe de dar um tratamento adequado as FFAA, como tem ocorrido nos últimos anos.
Impõe-se, com urgência, fortalecer as FFAA, com um Ministro da Defesa civil forte para defender os interesses da instituição, sua hierarquia e princípios, e com políticas voltadas para a recuperação da capacidade operacional.
Dentre as medidas que poderiam ser adotadas nessa direção, seria importante criar condições para reviver a indústria bélica que já foi significativa e hoje está quase desaparecida. Para produtos e serviços estratégicos seria necessário reduzir a dependência do exterior. Do ponto de vista da indústria de defesa, o Brasil carece de uma legislação – “Compre Brasil” - que beneficie os produtores locais, semelhante ao “Buy American Act”. No Brasil a indústria bélica recebe muito pouco apoio. Até o avião presidencial foi comprado no exterior, ignorando-se a Embraer.
A política exterior, por outro lado, ainda não incorporou o conceito de defesa externa. O discurso oficial na área externa – e não só no atual Governo – raramente menciona nossas preocupações com a defesa de nossas fronteiras e a necessidade de definir adequadamente uma política de Defesa Nacional. O Itamaraty não pode contar plenamente com as FFAA para respaldar as ações de politica externa.
Duas outras questões conceituais, trabalhadas em conjunto entre civis e militares, poderiam das mais sentido e valorizar o papel das FFAA.
Tendo repensado o papel das FFAA, pela primeira vez, a Política de Defesa Nacional, elaborada em 1996, no governo FHC, deveria ser atualizada para responder aos novos desafios do mundo pós-11 de setembro em diversos aspectos como o terrorismo, os crimes transnacionais, o contrabando de armas e a defesa de nossas fronteiras. Nos EUA, a doutrina de segurança nacional é revista anualmente.
A Escola Superior de Guerra poderia ser modernizada e seus cursos reorientados para as novas realidades contemporâneas. Seu foco deveria estar voltado para o conceito do interesse nacional e pensado como política pública.
A idéia da defesa do interesse nacional, muito presente em alguns países, é totalmente negligenciada no Brasil. A ESG seria o locus apropriado para estudar os diversos aspectos de nossa realidade, sob esse enfoque claro e definido, muito diferente da prioridade para a segurança e desenvolvimento que, por muito tempo, orientou seus cursos.
A incompetência da classe política para lidar com essas questões tem de ser superada para completar a despolitização das FFAA, fortalecer o controle civil e definir o papel dos militares no processo decisório do Estado brasileiro.