O Conselho do Mercosul reuniu-se em Córdoba, na Argentina, nos dias 21 e 22, para mais um encontro periódico de presidentes. A Argentina, que comandou o processo nos últimos seis meses, transferiu a presidência do Mercosul ao Brasil para o restante de 2006.
O primeiro semestre de 2006 foi um dos períodos mais difíceis na história do Mercosul. O aprofundamento da integração ficou comprometido pelo mecanismo de salvaguardas introduzido a pedido da Argentina e aumentou a insatisfação do Paraguai e do Uruguai quanto aos benefícios do processo para eles. Cresceu o número de disputas entre os países membros e foi decidida a ampliação do Mercosul com a inclusão da Venezuela, em decisão de natureza essencialmente política.
Como registrado na declaração presidencial, os resultados econômicos da Cúpula foram extremamente limitados, e nenhum progresso foi obtido nos tópicos mais relevantes para o aperfeiçoamento do Mercosul.
De concreto, foram assinados acordos-quadro de preferência tarifária com o Paquistão e com Cuba, que, do ponto de vista prático, no entanto, devem trazer resultados limitados.
Embora morno na substância, o encontro de Córdoba foi dos mais coloridos e movimentados. A pirotecnia ficou por conta tanto da "cúpula alternativa", realizada pela primeira vez durante uma reunião do Conselho, ao estilo comício anti-globalização e anti-americano. "A integração é nossa bandeira anti-imperialista", era um dos refrões dos manifestantes.
Chávez participou, como membro pleno em processo de adesão, com sua habitual visibilidade, respaldada pelas promessas financeiras que está fazendo aos demais membros. Fidel compareceu ao encontro, com a justificativa de participar da assinatura do acordo de preferências tarifárias com o Mercosul e até bateu boca com um jornalista argentino quando indagado sobre a sua sucessão.
A principal característica da 30ª reunião do Conselho do Mercosul foi a predominância da retórica política sobre a realidade econômica. A presença de Fidel foi o exemplo mais forte da politização do Mercosul e, talvez, simbólico do que o Presidente Chávez chamou de "relançamento do Mercosul"("A partir de Córdoba, tudo vai ser diferente").
Na nova fase do Mercosul, na minha visão, parece claro que começa a mudar a lógica do processo de integração do Cone Sul com a formação do eixo Caracas-Buenos Aires, simbolizado pelo lançamento do "bônus do Sul", projeto conjunto de títulos da dívida pública. Em conseqüência disso, várias propostas das duas capitais começam a ser analisadas pelo bloco: adesão da Bolívia como membro pleno, construção do mega-gasoduto bolivariano, Forças Armadas do Mercosul (propostas da Venezuela); observatório democrático e de direitos humanos e criação do Banco de Desenvolvimento do Sul (propostas da Argentina). Mesmo a modificação da bandeira do Mercosul, com a inclusão de mais uma estrela, foi proposta pela Venezuela.
Uma outra faceta desta nova fase é a precedência das agendas nacionais sobre a agenda da integração regional, como transparece nas ações da Venezuela, buscando a plataforma do Mercosul para seus próprios projetos: endosso à candidatura ao Conselho de Segurança da ONU, animosidade em relação aos EUA, em especial no tocante à ALCA, e projeto alternativo da ALBA, concretizado pelo Tratado de Comércio dos Povos entre Bolívia, Cuba e Venezuela.
Paraguai e Uruguai, que, insatisfeitos, buscam acordos de livre comércio com os EUA, apresentaram formalmente pedido para que fosse suspensa a regra do Mercosul impedindo negociações individuais de acordos comerciais com paises extra-bloco. O pedido foi negado pelo Brasil pois, na prática, implicaria o desmantelamento da união aduaneira.
Em meio a essa situação complexa para os formuladores da política externa brasileira, surgiu proposta da Argentina idêntica a que, ainda na década de 90, o Itamaraty tinha defendido, sem êxito, junto ao Banco Central. Trata-se de processar as transações comerciais nas moedas locais, eliminando a intermediação do dólar. Essa medida facilitaria a expansão do comércio regional com redução dos custos financeiros.
Refletindo o ânimo de seus respectivos países, o presidente do Paraguai havia anteriormente declarado que "a entrada da Venezuela poderá transformar o Mercosul em um fórum de maniqueísmo político ou na exacerbação de confrontos ideológicos ou dogmáticos". Celso Amorim, antes do encontro, fez entusiástica defesa da entrada da Venezuela, mas teria admitido que ela pode trazer "complicações politicas".
O Presidente Lula, por sua vez, afirmou em seu discurso que o Mercosul é como coração de mãe: sempre cabe mais um. Disse pretender "convencer o Evo Morales e outros países a virem ao Mercosul, para ter todo mundo falando em Mercosul do México à Patagônia, e trazendo Cuba também. Essa oportunidade não depende de nossos inimigos, mas de estarmos juntos, de construirmos juntos". Provavelmente, não foi lembrado ao presidente a existência da "cláusula democrática" que torna inviável a incorporação ao bloco de alguns candidatos potenciais. Embora "apreensivo e cuidadoso" com o futuro do bloco, não deixou de registrar que "o Mercosul está definitivamente mudando a geografia econômica do mundo". Convenhamos que não é pouca coisa.
O relançamento do Mercosul em bases tão nitidamente politicas é um equivoco e poderá ter um custo econômico para o Brasil. O Mercosul só terá condições de sobreviver na medida em que consiga viabilizar-se economicamente. Se o substrato econômico e comercial não avançar, de nada adianta traçar planos grandiosos nos terrenos político ou social, que o edifício não se sustenta.
Voltar a cuidar dos fundamentos econômicos para expandir o comércio, deveria ser, hoje, a tarefa principal no Mercosul. Cresceu significativamente o risco de transformar o Mercosul em mais um foro político de discussões pretensamente sociais.